outro
dia postei no facebook uma imagem da página ‘indiretas literárias’ que destacava a
seguinte frase: ‘gente que sofre de depressão pós-livro’ e, logo abaixo, a
ilustração de uma mulher prostrada sobre o braço de uma poltrona. notei, pela
leitura de alguns comentários, que algumas pessoas meio que não concordaram com
essa ideia de sentir depressão após a conclusão de um livro, que o sentimento
que deveria prevalecer era o da alegria esfuziante da conquista.
bem, talvez o termo
‘depressão’ não seja o mais adequado para descrever o sentimento que nos domina
quando acabamos de ler um livro que nos cala fundo ao peito. pode ser que
‘estado de desencorajamento, de perda de interesse, que sobrevém após
decepções, fracassos, estresse físico e/ou psíquico, no momento em que o
indivíduo toma consciência do sofrimento ou da solidão em que se encontra’ não
descreva essa estranha sensação de desamparo, de impotência e de perplexidade
que sentimos quando corremos com olhos ávidos e espavoridos pelas derradeiras
linhas de uma narrativa que vai se encerrar, a despeito de nosso desejo de que ela
continue adiante, adiante, sempre adiante...
mas como dizer algo
diferente disso que se assemelha mesmo a um estado depressivo, que dura até o
momento em que a leitura de um novo livro nos socorre, nos traz outra vez à
tona, pelo menos até o próximo naufrágio?
pois nesse redemoinho
semântico em que a palavra ‘depressão’ traduz a condição de incuráveis leitores
de romance é que me encontro, após a leitura da formidável narrativa de
soldados de salamina, do escritor espanhol javier cercas.
cercas, na mesma
linhagem dos demiurgos borgianos, no enreda numa trama que, por mais que
queiramos permanecer leitores reflexivos, armados dos pontiagudos aríetes da
verossimilhança, antes mesmo que concluamos o primeiro capítulo, já nos vemos
de mãos dadas com os ‘amigos do bosque’, travando as lutas com os ‘soldados de salamina’, a caminho do
‘encontro marcado em stockton’, como aqueles incautos e ingênuos leitores, tão
caros a goethe, a explorar o bosque por inteiro, sem se preocupar com os
detalhes das raízes, dos caules, das folhas e dos frutos das árvores que o compõem.
conforme também aconselha um roberto bolaño, surpreendentemente presente no
relato improvável de cercas, ‘a realidade sempre é traidora; o melhor é não lhe
dar tempo e traí-la antes’.
e eis que, sem mais
nem menos, vemo-nos deliberadamente traídos, melhor, apaixonadamente traídos
pela ficção, ao nos tornarmos amigos sinceros de um reacionário, mas perdoável,
sánchez mazas e, sobretudo, de um revolucionário e pé-de-valsa de ‘pasodoble’,
miralles.
em meio a uma trama
que vai se desenrendando conforme enreda o leitor, cercas, também
narrador-personagem, ensaia inclusive teorizar sobre o ato de escrever: ‘claro,
eu supunha que, à medida que o livro avançasse, esse propósito mudaria, porque
os livros sempre acabam ganhando vida própria e porque não se escreve sobre o
que se quer, mas sobre o que se pode; também supunha que, ainda que tudo o que
com o tempo eu conseguira averiguar sobre sánchez mazas constituísse o núcleo
de meu livro, o que me dava segurança, chegaria um momento em que teria de
prescindir dessas muletas, porque – se o que escreve tiver interesse real – um
escritor não escreve nunca sobre o que conhece, mas precisamente sobre o que
ignora’.
logo ali acima, falei
do desamparo, da impotência, da perplexidade a que o findar da leitura de um
grande livro nos lança. no meu caso, o desamparo tem a ver com o erre leitor, que
foi mais uma vez, com a devida autorização, ludibriado pela literatura, e que
não sabe o que fazer com tal logro, com tal trapaça, desde um, deus esteja,
ingarantido aprendizado. a impotência, tem a ver com o erre escritor, com a
assumida condição de um pseudo-narrador de relatos inenarráveis, posto que, travestidos
de malfadados ensaios. e a perplexidade? bem, esta tem a ver com o fio da
navalha da irresolução em que balança perigosamente um erradio erre: permanecer
nos estados depressivos de um satisfeito leitor, ou, insistir nos estados
depressivos de um insatisfeito escritor?
realmente, não sei
como se pode encontrar a tal esfuziante alegria diante de tanto estupor.
CERCAS, Javier. Soldados de Salamina. 1 ed. [trad. Wagner Carelli]. São Paulo: MEDIAfashion, 2012.
CERCAS, Javier. Soldados de Salamina. 1 ed. [trad. Wagner Carelli]. São Paulo: MEDIAfashion, 2012.