segunda-feira, 10 de junho de 2013

Soldados de Salamina

para raul arruda filho


outro dia postei no facebook uma imagem da página ‘indiretas literárias’ que destacava a seguinte frase: ‘gente que sofre de depressão pós-livro’ e, logo abaixo, a ilustração de uma mulher prostrada sobre o braço de uma poltrona. notei, pela leitura de alguns comentários, que algumas pessoas meio que não concordaram com essa ideia de sentir depressão após a conclusão de um livro, que o sentimento que deveria prevalecer era o da alegria esfuziante da conquista.

bem, talvez o termo ‘depressão’ não seja o mais adequado para descrever o sentimento que nos domina quando acabamos de ler um livro que nos cala fundo ao peito. pode ser que ‘estado de desencorajamento, de perda de interesse, que sobrevém após decepções, fracassos, estresse físico e/ou psíquico, no momento em que o indivíduo toma consciência do sofrimento ou da solidão em que se encontra’ não descreva essa estranha sensação de desamparo, de impotência e de perplexidade que sentimos quando corremos com olhos ávidos e espavoridos pelas derradeiras linhas de uma narrativa que vai se encerrar, a despeito de nosso desejo de que ela continue adiante, adiante, sempre adiante...

mas como dizer algo diferente disso que se assemelha mesmo a um estado depressivo, que dura até o momento em que a leitura de um novo livro nos socorre, nos traz outra vez à tona, pelo menos até o próximo naufrágio?

pois nesse redemoinho semântico em que a palavra ‘depressão’ traduz a condição de incuráveis leitores de romance é que me encontro, após a leitura da formidável narrativa de soldados de salamina, do escritor espanhol javier cercas.

cercas, na mesma linhagem dos demiurgos borgianos, no enreda numa trama que, por mais que queiramos permanecer leitores reflexivos, armados dos pontiagudos aríetes da verossimilhança, antes mesmo que concluamos o primeiro capítulo, já nos vemos de mãos dadas com os ‘amigos do bosque’, travando as lutas com os ‘soldados de salamina’, a caminho do ‘encontro marcado em stockton’, como aqueles incautos e ingênuos leitores, tão caros a goethe, a explorar o bosque por inteiro, sem se preocupar com os detalhes das raízes, dos caules, das folhas e dos frutos das árvores que o compõem. conforme também aconselha um roberto bolaño, surpreendentemente presente no relato improvável de cercas, ‘a realidade sempre é traidora; o melhor é não lhe dar tempo e traí-la antes’.

e eis que, sem mais nem menos, vemo-nos deliberadamente traídos, melhor, apaixonadamente traídos pela ficção, ao nos tornarmos amigos sinceros de um reacionário, mas perdoável, sánchez mazas e, sobretudo, de um revolucionário e pé-de-valsa de ‘pasodoble’, miralles.

em meio a uma trama que vai se desenrendando conforme enreda o leitor, cercas, também narrador-personagem, ensaia inclusive teorizar sobre o ato de escrever: ‘claro, eu supunha que, à medida que o livro avançasse, esse propósito mudaria, porque os livros sempre acabam ganhando vida própria e porque não se escreve sobre o que se quer, mas sobre o que se pode; também supunha que, ainda que tudo o que com o tempo eu conseguira averiguar sobre sánchez mazas constituísse o núcleo de meu livro, o que me dava segurança, chegaria um momento em que teria de prescindir dessas muletas, porque – se o que escreve tiver interesse real – um escritor não escreve nunca sobre o que conhece, mas precisamente sobre o que ignora’.

logo ali acima, falei do desamparo, da impotência, da perplexidade a que o findar da leitura de um grande livro nos lança. no meu caso, o desamparo tem a ver com o erre leitor, que foi mais uma vez, com a devida autorização, ludibriado pela literatura, e que não sabe o que fazer com tal logro, com tal trapaça, desde um, deus esteja, ingarantido aprendizado. a impotência, tem a ver com o erre escritor, com a assumida condição de um pseudo-narrador de relatos inenarráveis, posto que, travestidos de malfadados ensaios. e a perplexidade? bem, esta tem a ver com o fio da navalha da irresolução em que balança perigosamente um erradio erre: permanecer nos estados depressivos de um satisfeito leitor, ou, insistir nos estados depressivos de um insatisfeito escritor?

realmente, não sei como se pode encontrar a tal esfuziante alegria diante de tanto estupor.

CERCAS, Javier. Soldados de Salamina. 1 ed. [trad. Wagner Carelli]. São Paulo: MEDIAfashion, 2012.


sexta-feira, 7 de junho de 2013

A pera



A pera estava ali, num imobilizado exibicionismo, debruçada sobre a simplicidade de despeitadas bananas. Ele havia esperado até aquele momento para colhê-la, pois, ao contrário de ontem, ela se mostrava agora, desde um viçoso amarelo, que estava suficientemente madura para tornar-se definitivamente a fruta que dela se espera, ao desaparecer por entre os lábios, a língua e os dentes de um humano.

Após a primeira mordida, ele não sentiu no paladar a suculenta areia adocicada no que se transforma a carne de uma deliciosa pera madura. O gosto que lhe veio à boca foi o de um desenxabido sabor.

Experimentou, já desanimado pela frustração, mastigar um novo pedaço da pera, na esperança de que pelo menos o outro lado da fruta, por alguma razão, tivesse amadurecido. O mesmo gosto sem graça, o mesmo sabor de coisa nenhuma.

Olhou para a pera com olhos de quem olha para algo que já perdeu seu valor e, sem nem um outro sentimento além do de decepção, atirou-a no lixo.

Mal acabou de ouvir o barulho surdo da pera caindo no fundo do cesto, veio-lhe um pensamento perturbador. Tal como a pera, ele, àquela altura de sua existência, possuía a vivência e a aparência de alguém de quem se diz ter alcançado a tão ansiada maturidade. Seria isso mesmo verdade? Desde o seu ponto de vista, tal possibilidade estava muito longe de ser confirmada. Seria mesmo o caso de, segundo ele, em vez de jogar a pera sem graça, juntar-se a ela no mesmo salto em direção à inutilidade do que um cesto de lixo ajunta.