domingo, 13 de outubro de 2013

O sonho acabou



“Os sonhos, quando muito, inflam nosso espírito qual róseo balãozinho de aniversário, que, cedo demais estoura, ou, tarde demais, se esvazia”. Postei isso recentemente no Facebook. Comentei depois com o meu amigo Alisson Azevedo que ninguém havia “curtido” a minha postagem. Ele disse que obviamente ninguém iria “curtir” uma frase com esse teor desesperançado, sobretudo, quando ainda se está degustando saborosas rabanadas que sobraram da ceia de natal, enquanto se faz planos para a virada do ano novo, tempo de renovação de sonhos e de reativação de ideais, e não de tentativas de demonstração de fragilidades oníricas, sustentadas por sutis flanares de asas da borboleta.
No dia seguinte, recebi um telefonema do Alisson me desafiando: “Encontrei uma canção pra você!”. Ele estava fazendo remissão a uma proposta antiga que fizemos um ao outro, de escrever textos que seriam breves interpretações de letras de canções da MPB, projeto este constantemente adiado, em razão de outros, poéticos ou prosaicos, que nos consumiram (e ainda consomem).
“‘O sonho acabou’, do Gil, lembra?”, “Claro que sim, Alisson!, Mas, assim, na lata?”, “Sim, vamos aproveitar as férias e delegar essa tarefa para nós, como se fosse uma tarefa partidária, rs, essa vai ser a sua música e você precisa dizer qual vai ser a minha”. Despedimo-nos e fiquei tentando me lembrar da letra de “O sonho acabou”... “O sonho acabou, quem não dormiu de sleeping bag nem sequer sonhou...”, nada mais retive na memória.
Minutos depois, liguei para o Alisson e lhe disse: “Já que você me delegou uma tarefa tão difícil como essa, eis a sua canção: “‘Beatriz’. Se vira, meu irmão! Rs”. Ele riu e repudiou a minha sede de vingança.
Nunca dormi de sleeping bag, embora, a despeito disso, também tenha sonhado, e muito, e continuo sonhando.
Obviamente, o narrador (vou chamá-lo assim em razão de minha predileção pela prosa, ao contrário da do Alisson, tenaz poeta) de “O sonho acabou” está se referindo a uma determinada época em que eles e seus contemporâneos viveram com intensidade, provavelmente os irreverentes anos 1960, dormindo em sleeping bag, numa atitude hippie de simplesmente estar habitando um mundo sem fronteiras, e cuja família eram todos os amigos que fizessem pelo caminho, no road movie que era a vida de cada um deles.
Em outras palavras, tratava-se de uma atitude de negação ao modus vivendi do mundo em que ele se situava, impositor de um conformismo reificante, quase sempre por meios e métodos controladores e violentos.
Não raro tal negação se convertia na busca por evasão de tal realidade acachapante, como se pode inferir da menção de certo vilão em “O sonho acabou / desmanchando a trama do doutor Silvana”.
Dr. Silvana, um personagem de HQ, dos anos 1940, considerado um dos homens mais inteligentes do planeta, desiludido com a morte de sua esposa, julgou que a Terra não é mais um planeta digno de se viver, constrói uma espaçonave e passar a habitar o planeta Vênus, um pouco antes de a Primeira Guerra Mundial se iniciar.
Além dos gestos, como esses, negativos e evasivos, é possível identificar a tentativa do ato heroico por parte do narrador e de seus pares, no verso “O sonho acabou desmanchando.../ A transa do doutor Fantástico”. “Doutor Fantástico”, um filme de 1964, dirigido por Stanley Kubrick, que ironizava a Guerra Fria vivida à época.
O narrador também revela, para além da perda da fé no ser humano, a própria perda da fé transcendente, negando, portanto, qualquer possibilidade de redenção e salvação demiúrgica, conforme os heréticos versos sugerem: “O sonho acabou / Dissolvendo a pílula de vida do doutor Ross / Na barriga de Maria” e “O sonho acabou transformando / o sangue do cordeiro em água”.
A dissolução da possibilidade de cura para todos os males que a pílula de vida do doutor Ross deveria assegurar, desde o ventre de Maria, trará sim à luz um homem, aquele que deveria ser o caminho, a verdade e a vida, porém, como a vida, enquanto cura, foi dissolvida na barriga de sua mãe, ele virá ao mundo sem o poder do milagre para ofertá-lo aos homens, em forma de libertação e de toda sorte de prodígios.
Da mesma forma, o sonho acabado, ao transformar o sangue do cordeiro
em água, eliminou a possibilidade de redenção e salvação humanas, que só o seu derramamento na cruz do calvário poderia assegurar.
Não há como negar que o narrador canta “O sonho acabou” como um desalento de como a vida se lhe apresenta contemporaneamente. O sonho, portanto, não é uma predição, como se dá no sonhar acordado, nem uma visão disforme do porvir, como se dispõe numa profecia, mas transformou-se em lembrança, uma boa lembrança e, nesse sentido, não atua mais nos baixios do inconsciente e nem busca galgar os altos píncaros do desejo, mas está recolhido nas estantes da memória, fazendo com que o narrador, aparentemente, esteja deitado para sempre no colchão do imobilismo.
Mas isso não é totalmente verdadeiro, pois ele diz que “O sonho acabou... / Derretendo a minha mágoa / Derrubando a minha cama”. Sem dúvida, ele se soerguerá, buscará avidamente pelo poder restaurador de seu “melaço de cana” e continuará a continuar, ainda que inutilmente.

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