“Os sonhos, quando muito,
inflam nosso espírito qual róseo balãozinho de aniversário, que, cedo demais
estoura, ou, tarde demais, se esvazia”. Postei isso recentemente no Facebook.
Comentei depois com o meu amigo Alisson Azevedo que ninguém havia “curtido” a
minha postagem. Ele disse que obviamente ninguém iria “curtir” uma frase com
esse teor desesperançado, sobretudo, quando ainda se está degustando saborosas
rabanadas que sobraram da ceia de natal, enquanto se faz planos para a virada
do ano novo, tempo de renovação de sonhos e de reativação de ideais, e não de
tentativas de demonstração de fragilidades oníricas, sustentadas por sutis
flanares de asas da borboleta.
No dia seguinte, recebi um
telefonema do Alisson me desafiando: “Encontrei uma canção pra você!”. Ele
estava fazendo remissão a uma proposta antiga que fizemos um ao outro, de
escrever textos que seriam breves interpretações de letras de canções da MPB,
projeto este constantemente adiado, em razão de outros, poéticos ou prosaicos,
que nos consumiram (e ainda consomem).
“‘O sonho acabou’, do Gil,
lembra?”, “Claro que sim, Alisson!, Mas, assim, na lata?”, “Sim, vamos
aproveitar as férias e delegar essa tarefa para nós, como se fosse uma tarefa
partidária, rs, essa vai ser a sua música e você precisa dizer qual vai ser a
minha”. Despedimo-nos e fiquei tentando me lembrar da letra de “O sonho
acabou”... “O sonho acabou, quem não dormiu de sleeping bag nem sequer
sonhou...”, nada mais retive na memória.
Minutos depois, liguei
para o Alisson e lhe disse: “Já que você me delegou uma tarefa tão difícil como
essa, eis a sua canção: “‘Beatriz’. Se vira, meu irmão! Rs”. Ele riu e repudiou
a minha sede de vingança.
Nunca dormi de sleeping
bag, embora, a despeito disso, também tenha sonhado, e muito, e continuo
sonhando.
Obviamente, o narrador
(vou chamá-lo assim em razão de minha predileção pela prosa, ao contrário da do
Alisson, tenaz poeta) de “O sonho acabou” está se referindo a uma determinada
época em que eles e seus contemporâneos viveram com intensidade, provavelmente
os irreverentes anos 1960, dormindo em sleeping bag, numa atitude hippie
de simplesmente estar habitando um mundo sem fronteiras, e cuja família
eram todos os amigos que fizessem pelo caminho, no road movie que era a
vida de cada um deles.
Em outras palavras,
tratava-se de uma atitude de negação ao modus vivendi do mundo em que
ele se situava, impositor de um conformismo reificante, quase sempre por meios
e métodos controladores e violentos.
Não raro tal negação se
convertia na busca por evasão de tal realidade acachapante, como se pode
inferir da menção de certo vilão em “O sonho acabou / desmanchando a trama do
doutor Silvana”.
Dr. Silvana, um personagem
de HQ, dos anos 1940, considerado um dos homens mais inteligentes do planeta,
desiludido com a morte de sua esposa, julgou que a Terra não é mais um planeta
digno de se viver, constrói uma espaçonave e passar a habitar o planeta Vênus,
um pouco antes de a Primeira Guerra Mundial se iniciar.
Além dos gestos, como
esses, negativos e evasivos, é possível identificar a tentativa do ato heroico
por parte do narrador e de seus pares, no verso “O sonho acabou
desmanchando.../ A transa do doutor Fantástico”. “Doutor Fantástico”, um filme
de 1964, dirigido por Stanley Kubrick, que ironizava a Guerra Fria vivida à
época.
O narrador também revela,
para além da perda da fé no ser humano, a própria perda da fé transcendente,
negando, portanto, qualquer possibilidade de redenção e salvação demiúrgica,
conforme os heréticos versos sugerem: “O sonho acabou / Dissolvendo a pílula de
vida do doutor Ross / Na barriga de Maria” e “O sonho acabou transformando / o
sangue do cordeiro em água”.
A dissolução da
possibilidade de cura para todos os males que a pílula de vida do doutor Ross
deveria assegurar, desde o ventre de Maria, trará sim à luz um homem, aquele
que deveria ser o caminho, a verdade e a vida, porém, como a vida, enquanto
cura, foi dissolvida na barriga de sua mãe, ele virá ao mundo sem o poder do
milagre para ofertá-lo aos homens, em forma de libertação e de toda sorte de
prodígios.
Da mesma forma, o sonho
acabado, ao transformar o sangue do cordeiro
em
água, eliminou a possibilidade de redenção e salvação humanas, que só o seu
derramamento na cruz do calvário poderia assegurar.
Não há como negar que o
narrador canta “O sonho acabou” como um desalento de como a vida se lhe
apresenta contemporaneamente. O sonho, portanto, não é uma predição, como se dá
no sonhar acordado, nem uma visão disforme do porvir, como se dispõe numa
profecia, mas transformou-se em lembrança, uma boa lembrança e, nesse sentido,
não atua mais nos baixios do inconsciente e nem busca galgar os altos píncaros
do desejo, mas está recolhido nas estantes da memória, fazendo com que o
narrador, aparentemente, esteja deitado para sempre no colchão do imobilismo.
Mas
isso não é totalmente verdadeiro, pois ele diz que “O sonho acabou... / Derretendo
a minha mágoa / Derrubando a minha cama”. Sem dúvida, ele se soerguerá, buscará
avidamente pelo poder restaurador de seu “melaço de cana” e continuará a
continuar, ainda que inutilmente.
[imagem:
www.andrepaiva.com.br]
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