[…] o
resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão.
Guimarães Rosa
(1)
Desenrodilhou-se lentamente. Os pêlos encresparam-se. Os olhos
inflamaram em vermelho-rubro. Não via mais o menino, mas uma presa. Não via nas
mãos do menino a oferta de três novos biscoitos à guisa de pazes. Via uma rósea
mão com cinco dedos em apreciável e tenro desejo antropofágico. Avançou desde o
chão, recém-convertida em predadora: a cabeça rente à rala grama que crescia
debaixo da edícula suspensa. A parte traseira do corpo levemente alteada. O
menino a avistou sorrindo. Ela ganindo baixo dispensou as boas-vindas. Saltou
em desencontrada carreira na direção do agora assustado menino que inerte
deixou cair, um a um, os biscoitos de sua mão. Não esboçou um novo berro, hirto
que estava. Ti...ra..na...(!?), balbuciou, um segundo antes de ela cair sobre
ele.
(2)
Tirana!... Tiraaana!... Tiraaanaaaaa!...
(3)
Enrodilhou-se num canto inalcançável do assoalho da edícula.
(4)
Tinha cabimento?! Um sorrateiro mordiscar no biscoito da mão do
menino, daí um tapa no pé da orelha, tão humilhante e doído?! Era motivo para
tanta brutalidade? Era? Afinal de contas eu não fui encontrada nas ruas,
vagabundeando com outros vira-latas da minha laia. É... talvez eu seja só isso
mesmo: uma vira-latas. Mas... então pra quê todo aquele cuidado? Aquela
recepção calorosa? Aquele carinho todo? Banho e tosa e vacina e vermífugo e
casinha no quintal? Ração de primeira... isso tudo apesar do tom amarelo de meus
pêlos, do focinho avantajado, do vergonhoso rabo fino, quase sempre entre as
pernas por conta de um medo ancestral que nos acompanha... os vira-latas. Agora
isso... pancada!... Eu não pedi pra vir pra cá, não. Me pegaram porque
quiseram. Que mal eu fiz? O de retribuir em carinho redobrado? O de ser uma
insone vigilante? O de fazer festa com cada um deles quando voltam pra casa? O
de me comportar decentemente na presença das visitas? O de não latir e nem
morder o carteiro, o entregador de gás e a manicure? Sempre fui isso:
comportada, obediente, transigente, cordata, compreensiva, disponível. Mesmo
nas horas em que o menino vinha perturbar meu sono e minha paz. Sempre disposta
a correr atrás de bolinhas, a sentar, a rolar, a ir dormir mesmo que estivesse
sem sono. Sempre isso: a cumpridora fiel do meu papel de cadela: a Tirana? Essa
cadela é um doce, até parece de raça. Então é isso? Esse é o critério que
separa os de-raça e os vira-latas? A obediência e o adestramento? Cadela não,
cachorra! Cachorra não, bicho! Bicho não, coisa!: o lento esvaziamento de toda
uma história feita de afagos, tatibitates de latidos e vozes em soprano, ossos
de contrabando, coleira anti-carrapato, cirurgia pra castração, banhos no
pet-shop: um investimento humano para uma imerecida... coisa. Então que a coisa
exista!. ora bolas... a merda de um biscoito, o berro do menino, o arregalar
dos olhos, a descompostura e o tapa, mais humilhante que doído, de um dono
agora irreconhecível, bem no pé-do-ouvido. Era pra eu aprender alguma coisa com
isso? Aprendi sim: a não confiar em homem nenhum. Ainda ouvi a voz da mulher:
tá vendo, por isso é que eu não queria essa coisa aqui em casa, a culpa é tua,
homem! A coisa e o homem. Antes Tirana e seu dono. Não quero mais dono, quero
ser dona de mim mesma, agora, já. Tirana? Que eu faça então justiça ao nome
humano que me foi dado. Não mais ser mandada, mas mandar, ditar as regras,
ordenar. Que reine em mim o cão esquecido, não domesticado! Que eu faça jus à
raça dos canídeos, carnívoros, hei!
(5)
Tiranaaaaa!... Tiraninhaaaa....!
(6)
Enrodilhou-se no lado da cama em que o homem dormia.
(7)
O homem serviu-a com um prato fundo de leite morno e foi
colocando, um a um, os biscoitos que ainda restavam no pacote. Sorriu pelo
canto da boca como se pedisse perdão por tê-la esbofeteado por um motivo tão
irrelevante. Observava as marcas de sangue seco que deixavam seus pêlos
amarelos ainda mais ásperos. E ela comia seu leite-com-biscoito devagar e para
sempre.
(8)
Estendido no varal de roupa, a contragosto da mulher, está
secando a pele resultante do embate canis versus lupus.
(9)
O menino enrodilhou-se com Tirana num canto inencontrável do
assoalho da casa.
(10)
Tiranaaaa...! Tirana...! Ti...
[imagem: animespirit.com.br]
Nenhum comentário:
Postar um comentário