quarta-feira, 8 de maio de 2013

De cães e lobos



[…] o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão.
Guimarães Rosa


(1)
Desenrodilhou-se lentamente. Os pêlos encresparam-se. Os olhos inflamaram em vermelho-rubro. Não via mais o menino, mas uma presa. Não via nas mãos do menino a oferta de três novos biscoitos à guisa de pazes. Via uma rósea mão com cinco dedos em apreciável e tenro desejo antropofágico. Avançou desde o chão, recém-convertida em predadora: a cabeça rente à rala grama que crescia debaixo da edícula suspensa. A parte traseira do corpo levemente alteada. O menino a avistou sorrindo. Ela ganindo baixo dispensou as boas-vindas. Saltou em desencontrada carreira na direção do agora assustado menino que inerte deixou cair, um a um, os biscoitos de sua mão. Não esboçou um novo berro, hirto que estava. Ti...ra..na...(!?), balbuciou, um segundo antes de ela cair sobre ele.
(2)
Tirana!... Tiraaana!... Tiraaanaaaaa!...
(3)
Enrodilhou-se num canto inalcançável do assoalho da edícula.
(4)
Tinha cabimento?! Um sorrateiro mordiscar no biscoito da mão do menino, daí um tapa no pé da orelha, tão humilhante e doído?! Era motivo para tanta brutalidade? Era? Afinal de contas eu não fui encontrada nas ruas, vagabundeando com outros vira-latas da minha laia. É... talvez eu seja só isso mesmo: uma vira-latas. Mas... então pra quê todo aquele cuidado? Aquela recepção calorosa? Aquele carinho todo? Banho e tosa e vacina e vermífugo e casinha no quintal? Ração de primeira... isso tudo apesar do tom amarelo de meus pêlos, do focinho avantajado, do vergonhoso rabo fino, quase sempre entre as pernas por conta de um medo ancestral que nos acompanha... os vira-latas. Agora isso... pancada!... Eu não pedi pra vir pra cá, não. Me pegaram porque quiseram. Que mal eu fiz? O de retribuir em carinho redobrado? O de ser uma insone vigilante? O de fazer festa com cada um deles quando voltam pra casa? O de me comportar decentemente na presença das visitas? O de não latir e nem morder o carteiro, o entregador de gás e a manicure? Sempre fui isso: comportada, obediente, transigente, cordata, compreensiva, disponível. Mesmo nas horas em que o menino vinha perturbar meu sono e minha paz. Sempre disposta a correr atrás de bolinhas, a sentar, a rolar, a ir dormir mesmo que estivesse sem sono. Sempre isso: a cumpridora fiel do meu papel de cadela: a Tirana? Essa cadela é um doce, até parece de raça. Então é isso? Esse é o critério que separa os de-raça e os vira-latas? A obediência e o adestramento? Cadela não, cachorra! Cachorra não, bicho! Bicho não, coisa!: o lento esvaziamento de toda uma história feita de afagos, tatibitates de latidos e vozes em soprano, ossos de contrabando, coleira anti-carrapato, cirurgia pra castração, banhos no pet-shop: um investimento humano para uma imerecida... coisa. Então que a coisa exista!. ora bolas... a merda de um biscoito, o berro do menino, o arregalar dos olhos, a descompostura e o tapa, mais humilhante que doído, de um dono agora irreconhecível, bem no pé-do-ouvido. Era pra eu aprender alguma coisa com isso? Aprendi sim: a não confiar em homem nenhum. Ainda ouvi a voz da mulher: tá vendo, por isso é que eu não queria essa coisa aqui em casa, a culpa é tua, homem! A coisa e o homem. Antes Tirana e seu dono. Não quero mais dono, quero ser dona de mim mesma, agora, já. Tirana? Que eu faça então justiça ao nome humano que me foi dado. Não mais ser mandada, mas mandar, ditar as regras, ordenar. Que reine em mim o cão esquecido, não domesticado! Que eu faça jus à raça dos canídeos, carnívoros, hei!
(5)
Tiranaaaaa!... Tiraninhaaaa....!
(6)
Enrodilhou-se no lado da cama em que o homem dormia.
(7)
O homem serviu-a com um prato fundo de leite morno e foi colocando, um a um, os biscoitos que ainda restavam no pacote. Sorriu pelo canto da boca como se pedisse perdão por tê-la esbofeteado por um motivo tão irrelevante. Observava as marcas de sangue seco que deixavam seus pêlos amarelos ainda mais ásperos. E ela comia seu leite-com-biscoito devagar e para sempre.
(8)
Estendido no varal de roupa, a contragosto da mulher, está secando a pele resultante do embate canis versus lupus.
(9)
O menino enrodilhou-se com Tirana num canto inencontrável do assoalho da casa.
(10)
Tiranaaaa...! Tirana...! Ti...

[imagem: animespirit.com.br]

Nenhum comentário:

Postar um comentário