Não matarás. Não
adulterarás.
Êx. 20:13-14
se
me arrependo? [uma pergunta digna para os que sobrevivem!]. não. ainda bebo
gota-a-gota o mel-amargo do remorso.
o
que tem sido minha vida depois do acontecido? antes... o que lhe dá a certeza
de que há um homem vivo em sua frente? o fato de ele estar sentado e falando?
esses simples gestos fazem do homem um ser vivente? [um morto-em-vida, ... a
palavra mais certa]. posso dizer que estou vivo mas não pelo o que você pode
ver em mim. [nem eu consigo ver, apenas sentir]. orgulho, meu caro, orgulho. o
orgulho é a chama que me distancia de um moribundo [e arde na integridade de
meu corpo-e-alma como se fora a minha segunda natureza].
meu
corpo como um todo é o orgulho. mas tudo é mais orgulho: em minha cabeça, em
meu pensamento. daí, então, a densa paisagem humana e mundana que me cerca
passa a ser modulada por esse sentimento: tudo o que me remete à minha
humanidade: como vejo o mundo, como disponho as pessoas que me cercam.
você
mesmo [que pergunta com a distância segura de quem daqui a pouco vai ter mais o
que fazer] é uma prova desse orgulho de que sobrevivo [por estar diante de
mim a multiplicar os meus e os espantos
alheios]: pois em instantes você irá embora agigantando a notícia e matizando
de drama a minha confissão... e eu serei novamente dominado por todo esse
orgulho [que se é minha sobrevida é também a minha consumição] de maneira
concentrada, num espaço 2 x 2.
mas,
se você me permite, responderei sua pergunta com outra: aquela ordem em que os
mandamentos foram apresentados também determina o peso e a condenação de cada
pecado? assim... de forma ordenada, classificatória: matar é pior que trair?...
não sabe? não poderia saber? é... pra você talvez só importe a notícia
veiculada: o breve susto que ela proporciona e o posterior e inevitável tédio
do leitor ávido por uma nova boa-nova.
você
quer é o fato desmembrado das sutilezas de minha opinião, não é? quer é
alcançar o cerne do acontecido sem a minha grelha interpretativa, pois sim?
não? longe disso? pois lhe asseguro: o limite da limpidez objetiva do meu
relato sou eu mesmo: você só terá nas mãos aquilo que eu colocar nelas. para
além disso, quem determinará o que será noticiado serão você e sua imaginação.
portanto, recolha as peças que lhe ofereço e monte o seu próprio
quebra-cabeças.
enquanto
eu era o homem traído, o que ela era? acaso vivia sob o julgamento e a
condenação dos outros? penso que o pecado dela estava exposto em praça pública,
embora habitasse a alcova de hotéis e motéis. e eu? apascentado. [ovelha
displicente fazendo o que a mestra mandava].
há
alguma vantagem no usufruto dessa ingenuidade? servir de mau e bom exemplo para
tenazes maledicências? Sabia?... sim você deve saber... quem é traído vive já
um julgamento e uma condenação por conta de sua própria desinformação. a
condição de ser “o último a saber” já vem acompanhada de epítetos inglórios:
otário, idiota, cego etc.
o
traído é por si só um predestinado portador de uma indelével marca invisível: a
da cobardia da traição. ainda não é razão suficiente?... curioso como nesses
casos sempre se aciona a caixa-preta dos bons sentimentos, fazendo-nos crer que
há sempre uma saída melhor que a tragédia. mas... e a tragédia anterior: a que
é encenada nos bastidores? essa não conta? por acaso ela não já está eivada de
dor, de desprazer e não é desde sempre o alimento para muitos ódios? não é
carne devorando carne: num anseio que, em última instância, leva à exaustão, à
consumição, donde, após um certo tempo resulta em fedentina?
ora,
ora, meu caro, pelo que vejo os urubus estiveram sempre à espreita, o meu gesto
foi tão somente oferecer a eles carne-fresca, ao invés daquela em estado de
decomposição.
sinto
por esse seu quase-imperceptível sorriso no canto-da-boca que a matéria vai
ficar boa, não? não, não precisa se explicar. todos têm, mais ou menos, um
prazer contido pela morbidez: sade e/ou masoch: o menu está sempre aberto para
pedidos mais refinados. não é o seu caso? ... sei... cuidado para não se
esvaziar na assepsia dos fatos em si mesmos...
mas,
enfim, esse é o seu trabalho, é a sua escolha: informar. bem... talvez agora
você já esteja querendo saber do sangue, não é? este que agora tenho em minhas
mãos. este que redimiu o pecado dela. esta espessa gosma vermelha que estava
dentro dela, bombeando aquele coração que está agora encapsulado pela sutileza
do perdão.
ela
chegou. recendendo àquela segurança de quem tem a vida sob controle [o orgulho,
meu caro, o orgulho!]. me viu na cozinha e piscou. se dirigiu para o quarto
solfejando uma música qualquer. bebi mais um gole. eu era uma estátua
semovente. peguei o revólver. subi para o quarto. ela estava se despindo. se
assustou com a minha chegada e cobriu com as mãos os seios, como se tivesse
vergonha de mim, como se eu nunca os tivesse visto.
rá!
o ódio disse amém! [orgulho, meu caro, orgulho!]. mostrei-lhe a arma, acenando
com o cano para que ela continuasse a se despir. ela não disse palavra. já
intuía naquele momento tudo o que iria perder [o orgulho, meu caro, o orgulho!].
uma lágrima começou a sair do canto de seu olho esquerdo. eu, impávido, hirto,
inabalável. ela não suplicara por nada, ainda. estava nua diante de mim, mas
com a cabeça baixa, mobilizada por um suave, porém incontrolável, soluço.
pedi
que ficasse de costas e se ajoelhasse. ela obedeceu, e vagarosamente virou-se e
ajoelhou-se, entre soluços agora mais descompassados, que buscava inutilmente
conter com as mãos. mirei a arma em sua nuca. [cadê o orgulho, heim? cadê a
segurança? a firmeza? aquela resposta sempre-pronta para qualquer pergunta?].
consegue
sentir a tensão do meu prazer naquele momento? [que voltei a sentir agora neste
relato].
os
soluços cresceram já tomados pelo desespero e por meu silêncio que nada
perguntava, escondido que estava atrás do gigantesco revólver. [ah, o orgulho,
meu caro, o orgulho!]. mirei e disparei naquela nuca, uma a uma, as balas,
caindo, barulhentas, após cada pác!, surdo, que esvaziava o tambor do revólver.
fumaça de pólvora e silêncio.
eis
aí a minha história que agora é sua.
mas
você já está indo? assim sem nenhuma palavra a mais? não quer mais me ouvir? ninguém
pode fazer justiça com as próprias mãos?! fui fiel o tempo todo!! ouviu?!
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