domingo, 12 de maio de 2013

Um fiel e dois pratos fazem uma balança?



Não matarás. Não adulterarás.
Êx. 20:13-14

se me arrependo? [uma pergunta digna para os que sobrevivem!]. não. ainda bebo gota-a-gota o mel-amargo do remorso.
o que tem sido minha vida depois do acontecido? antes... o que lhe dá a certeza de que há um homem vivo em sua frente? o fato de ele estar sentado e falando? esses simples gestos fazem do homem um ser vivente? [um morto-em-vida, ... a palavra mais certa]. posso dizer que estou vivo mas não pelo o que você pode ver em mim. [nem eu consigo ver, apenas sentir]. orgulho, meu caro, orgulho. o orgulho é a chama que me distancia de um moribundo [e arde na integridade de meu corpo-e-alma como se fora a minha segunda natureza].
meu corpo como um todo é o orgulho. mas tudo é mais orgulho: em minha cabeça, em meu pensamento. daí, então, a densa paisagem humana e mundana que me cerca passa a ser modulada por esse sentimento: tudo o que me remete à minha humanidade: como vejo o mundo, como disponho as pessoas que me cercam.
você mesmo [que pergunta com a distância segura de quem daqui a pouco vai ter mais o que fazer] é uma prova desse orgulho de que sobrevivo [por estar diante de mim  a multiplicar os meus e os espantos alheios]: pois em instantes você irá embora agigantando a notícia e matizando de drama a minha confissão... e eu serei novamente dominado por todo esse orgulho [que se é minha sobrevida é também a minha consumição] de maneira concentrada, num espaço 2 x 2.
mas, se você me permite, responderei sua pergunta com outra: aquela ordem em que os mandamentos foram apresentados também determina o peso e a condenação de cada pecado? assim... de forma ordenada, classificatória: matar é pior que trair?... não sabe? não poderia saber? é... pra você talvez só importe a notícia veiculada: o breve susto que ela proporciona e o posterior e inevitável tédio do leitor ávido por uma nova boa-nova.
você quer é o fato desmembrado das sutilezas de minha opinião, não é? quer é alcançar o cerne do acontecido sem a minha grelha interpretativa, pois sim? não? longe disso? pois lhe asseguro: o limite da limpidez objetiva do meu relato sou eu mesmo: você só terá nas mãos aquilo que eu colocar nelas. para além disso, quem determinará o que será noticiado serão você e sua imaginação. portanto, recolha as peças que lhe ofereço e monte o seu próprio quebra-cabeças.
enquanto eu era o homem traído, o que ela era? acaso vivia sob o julgamento e a condenação dos outros? penso que o pecado dela estava exposto em praça pública, embora habitasse a alcova de hotéis e motéis. e eu? apascentado. [ovelha displicente fazendo o que a mestra mandava].
há alguma vantagem no usufruto dessa ingenuidade? servir de mau e bom exemplo para tenazes maledicências? Sabia?... sim você deve saber... quem é traído vive já um julgamento e uma condenação por conta de sua própria desinformação. a condição de ser “o último a saber” já vem acompanhada de epítetos inglórios: otário, idiota, cego etc.
o traído é por si só um predestinado portador de uma indelével marca invisível: a da cobardia da traição. ainda não é razão suficiente?... curioso como nesses casos sempre se aciona a caixa-preta dos bons sentimentos, fazendo-nos crer que há sempre uma saída melhor que a tragédia. mas... e a tragédia anterior: a que é encenada nos bastidores? essa não conta? por acaso ela não já está eivada de dor, de desprazer e não é desde sempre o alimento para muitos ódios? não é carne devorando carne: num anseio que, em última instância, leva à exaustão, à consumição, donde, após um certo tempo resulta em fedentina?
ora, ora, meu caro, pelo que vejo os urubus estiveram sempre à espreita, o meu gesto foi tão somente oferecer a eles carne-fresca, ao invés daquela em estado de decomposição.
sinto por esse seu quase-imperceptível sorriso no canto-da-boca que a matéria vai ficar boa, não? não, não precisa se explicar. todos têm, mais ou menos, um prazer contido pela morbidez: sade e/ou masoch: o menu está sempre aberto para pedidos mais refinados. não é o seu caso? ... sei... cuidado para não se esvaziar na assepsia dos fatos em si mesmos...
mas, enfim, esse é o seu trabalho, é a sua escolha: informar. bem... talvez agora você já esteja querendo saber do sangue, não é? este que agora tenho em minhas mãos. este que redimiu o pecado dela. esta espessa gosma vermelha que estava dentro dela, bombeando aquele coração que está agora encapsulado pela sutileza do perdão.
ela chegou. recendendo àquela segurança de quem tem a vida sob controle [o orgulho, meu caro, o orgulho!]. me viu na cozinha e piscou. se dirigiu para o quarto solfejando uma música qualquer. bebi mais um gole. eu era uma estátua semovente. peguei o revólver. subi para o quarto. ela estava se despindo. se assustou com a minha chegada e cobriu com as mãos os seios, como se tivesse vergonha de mim, como se eu nunca os tivesse visto.
rá! o ódio disse amém! [orgulho, meu caro, orgulho!]. mostrei-lhe a arma, acenando com o cano para que ela continuasse a se despir. ela não disse palavra. já intuía naquele momento tudo o que iria perder [o orgulho, meu caro, o orgulho!]. uma lágrima começou a sair do canto de seu olho esquerdo. eu, impávido, hirto, inabalável. ela não suplicara por nada, ainda. estava nua diante de mim, mas com a cabeça baixa, mobilizada por um suave, porém incontrolável, soluço.
pedi que ficasse de costas e se ajoelhasse. ela obedeceu, e vagarosamente virou-se e ajoelhou-se, entre soluços agora mais descompassados, que buscava inutilmente conter com as mãos. mirei a arma em sua nuca. [cadê o orgulho, heim? cadê a segurança? a firmeza? aquela resposta sempre-pronta para qualquer pergunta?].
consegue sentir a tensão do meu prazer naquele momento? [que voltei a sentir agora neste relato].
os soluços cresceram já tomados pelo desespero e por meu silêncio que nada perguntava, escondido que estava atrás do gigantesco revólver. [ah, o orgulho, meu caro, o orgulho!]. mirei e disparei naquela nuca, uma a uma, as balas, caindo, barulhentas, após cada pác!, surdo, que esvaziava o tambor do revólver. fumaça de pólvora e silêncio.
eis aí a minha história que agora é sua.
mas você já está indo? assim sem nenhuma palavra a mais? não quer mais me ouvir? ninguém pode fazer justiça com as próprias mãos?! fui fiel o tempo todo!! ouviu?!

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