(aqui e agora)
[Agora seríamos eu meu bandolim a entoar
novas e outras vibrações].
(do sonhar)
[O baque forte, firme, viril e seco de corpo caindo no piso de
vermelhão troou no meu sonho de maneira diversa]
: tocava meu bandolim no alto do morro do Mendanha, um urubu,
malandramente, sobrevoava minha cabeça, ora alto, ora baixo. De repente ele
ganhou mais distância como pra pegar maior impulso. Aquele ponto negro alado
foi se aproximando, se aproximando e ganhando uma absurda velocidade em minha
direção. Continuei a tocar, mas meu corpo já vibrava mais que as cordas do
bandolim. Um rasante rente à minha cabeça tirou meu escalpo e eu fui caindo de
costas enquanto olhava o urubu ganhando novamente as alturas. Fui caindo
lentamente, lentamente, lentamente... e PÃM!:
[o baque forte, firme, viril e seco de corpo caindo]
: o meu corpo numa pedra no pé do morro do Mendanha. Apesar do
susto que me fez simular uma queda da cama, não acordei. A estranheza do sonho
mudou de canal e eu já estava em outra paisagem que não lembro mais.
[Pudesse ficaria pra sempre naquela paisagem inominada e
disforme. Pudesse não amanheceria jamais para o tumulto, para o terror, para a
dor e para a tristeza provocada por aquele baque forte, firme, viril e seco de
corpo caindo em concreto]
[naquela terça, tarde da noite].
(de trás pra diante)
No meu peito senti um misto de alegria profunda, indescritível,
mas havia ao lado disso uma nódoa de tristeza que não queria se desmanchar,
[sei lá... um peso insustentável que me punha pra baixo tal como
se eu tivesse sobre a cabeça uma enorme bigorna e desde o tórax um mim mesmo
nascendo de novo, mas já do tamanho do que eu era!].
Não tive coragem de ir abrindo as linguetas pra ver o que tinha
dentro
[o bandolim que eu tanto sonhara?].
Senti como se de repente eu não mais o merecesse, como se não
mais precisasse dele, como se eu nunca fosse ver por meus próprios dedos ele se
fazer em notas musicais. [Senti assim].
(como?!)
Levantei e a atmosfera não era a mais a mesma,
[pressenti].
Não senti, entre o sono profundo e a vigília, aquele rosto de
barba mal-feita a roçar o meu,
[como acontecia todas as manhãs, às vezes mais tarde, às vezes
mais cedo].
(do enxergar)
Sentei-me na cama, olhei para o lado e ali estava: uma case
preta com as linguetas prateadas cheirando àquele indecifrável cheiro de
instrumentos novos,
[de como quando a gente ia juntos à Casa Betânia comprar
encordoamento novo para o seu violão feito sob medida pelas mãos artesanais do luthier
Signorini].
(não.)
Já começava mesmo a sentir raiva daquele instrumento ridículo
que agora pesava nas minhas costas como um fado que eu não pedira.
(não!)
A manhã amanhecia lenta: os primeiro raios de sol perfuravam a
cortina do meu quarto e alcançavam a minha desalegria. Por nada eu sairia
daquele quarto,
[inda mais que eu já ouvia agora uns soluços abafados que
reconheci: eram de minha mãe. Só ouvi iguais a esse quando fiquei uma vez
internado com dengue. Minha mãe soluçou assim, disfarçando a dor, enquanto o
meu humor se alternava entre febres e náuseas].
Mas por que ela iria soluçar agora se eu estava ali no quarto
feliz com meu presente, esperando só a hora d’eles entrarem de supetão e
gritarem: “surpresa!”?.
[Que surpresa era aquela que o próprio presente a surpreendia?].
Não, não mesmo, eu não iria sair daquele quarto. Mais que isso:
não deixaria ninguém entrar! Não queria mais saber de nada. Iria tapar os
ouvidos para qualquer notícia e iria gritar mais alto que a voz de qualquer um
que quisesse me contar alguma novidade. Não, eu só queria o antigo
: [pra trás a gente só pode é nascer de novo, pra frente a
velhice e a.].
(por detrás de)
Ensimesmei-me
: [lesma para dentro de sua concha, recém-nascido de volta ao
seu útero]. Silêncio. [Silêncio de.].
A porta do meu quarto ameaçou abrir.
[Viesse já?].
Eu não estava preparado pra nada. Rangeu na espessura do medo de
quem tentava abri-la. Eu vi
: [a porta estava com medo!].
Eu não fiquei com medo da porta em si a ranger, pavor maior meu
era do vazio em que ela se faria ao se desnudar em larga aba. Por mim ela
permaneceria fechada para sempre,
[como meu sobressalto agora aquietado dentro do meu imobilismo;
como o bandolim dentro da case, bem guardado pelas linguetas].
[Mas essa tardança não se dá indefinidamente, uma hora ou
outra precisamos enfrentar o que revela sua agônica demora].
E deu-se assim: minha mãe entre soluços e lágrimas deu sentido
àquele baque forte, firme, viril e seco de corpo caindo na última terça feira,
[tarde da noite],
enquanto eu sonhava com bandolins, urubus malandros, vôos
rasantes, escalpos, quedas, pedras e morros do Mendanha.
(o que pra ser não era)
Naquela manhã a quietude do Novo Horizonte foi quebrada não pela
balbúrdia, mas pelo baque surdo do silêncio. O bom coração vagabundo de meu pai
o levara para longe do roçar de sua barba em meu rosto em tolas manhãs. Antes
disso ele já havia trocado o metrônomo pelo marca-passo, o cigarro pelo ar
quase puro das caminhadas no parque Vaca Brava, a Skol pela Coca Zero, o que
renovou as nossas esperanças,
[minha e de minha mãe],
de dias melhores por conta de boas melhoras em seu estado de
saúde. Diagnosticou-se disritmia cardíaca
[um paradoxo para quem ditava o ritmo].
Ora, o que ele curtia era o chorinho e o chorão e não o samba de
breque. A síncope era só permitida para tomar o “mé”. No mais, a extensão
lancinante de cordas e sopros em pé na tábua, em bate papo, se machucando em
doces melodias, modulando o pedacinho do céu.
(fatum?)
[É pouca a ironia?].
Pois bem, naquela noite de terça,
[tarde da noite],
ele voltava de uma apresentação no Centro de Convenções. Ele e o
grupo dele fizeram a abertura do Congresso Mostra Saúde (!)
[por que ela não continuou se mostrando?!].
Chegou, deve ter beijado minha mãe, foi ao banheiro e
: [aquele baque forte, firme, viril e seco de corpo caindo no
chão de vermelhão, vermelho e duro].
Eu não vi, só ouvi, pois estava demasiado ocupado a sonhar com
urubus malandros... e bandolins... e quedas... e pedras... e morros do
Mendanha...
(desde o ver)
Mais tarde, meu pai já não podia mais beijar,
[nunca mais],
com sua barba mal-feita, o meu rosto, em inesquecíveis manhãs.
Seu corpo agora, sem disritmia cardíaca e sem o ritmo que ele ditava no violão
artesanalmente feito pelo luthier Signorini, jazia sobre uma laje fria
no Centro Comunitário do Setor Novo Horizonte, circundado por uma estranha
formação que entoava chorinhos, choros e chorões sem violão, sem cavaquinho,
sem o odiento bandolim, sem flauta,
[enfim].
(antes de)
Até então eu não tinha chorado, ensimesmado estava
: [lesma para dentro de sua concha, recém-nascido de volta ao
seu útero]. Mas quando o Zé Geus empunhou sua clarineta e começou a entoar os
primeiros acordes de Vibrações...
(era pra ser?)
Quando voltei a mim, estava deitado outra vez na minha cama. Vi
pelos fracos raios de sol que varavam a cortina do meu quarto que o dia também
já se ia. Olhei para o lado e ele continuava lá, dentro da case,
[as linguetas intocadas].
Já não tinha mais forças pra chorar. Fiquei assim com olhar
voltado para o bandolim que jazia dentro da case preta.
[O sal de uma lágrima mal secada no canto do olho. Uma
sobriedade alcançada pela exaustão].
(quando do porquê)
O ódio ao instrumento havia passado. Foi quando tive coragem de
querer ver como ele era:
[plac... plac... plac...]
lingueta a lingueta fui desnudando-o. E lá estava ele sobre um
delicado forro vermelho. Ele me olhava, refletindo em seu claro verniz a fraca
lâmpada do meu aposento. Foi aí que entendi. Doloridamente entendi: ao chamar
por meu pai aos berros lá no cemitério, eu chamava a mim mesmo.
(ungrunff!!!)
aí não, velho, cara, aí não, fui tomado de uma saudade, uma
saudade foi me tomando, uma torrente de lágrimas foi me afogando, eu querendo
verter aquela inundação que me fazia faltar o ar...
[a dor, o peso, o urubu de novo vindo em minha direção],
eu engolindo lágrimas e soluços, me senti miúdo naquelas vielas
do Cemitério Memorial Batista, não vi mais ninguém,
[ninguém me via],
eu, a viela, a torrente de lágrimas, o Zé Geus, as vibrações da
clarineta, daí...
[Deus!]...
o bandolim...
[Meu Deus!]...
[Deus meu!]...
eu não tinha deixado ele trancafiado na case?!... eu
tinha... eu juro que eu tinha... ele veio... o som dele veio... me tomando...
me dominando... fazendo estrago dentro de mim... aí eu não agüentei mais e
gritei o maior grito que minha voz um dia gritará: [Joãããããoooo!!!!!
Joãããããoooo!!!!! Joãããããoooo!!!!!].
(de diante pra trás)
Não quis me levantar da cama. Queria voltar a dormir
urgentemente. Queria não ter pedido de presente aquele presente que eu tanto
queria e que por tanto querer custaria um preço alto demais:
[o custo de toda uma vida].
[Que ele voltasse às avessas a ser madeira, depois árvore
frondosa para pouso de fubazentos tico-ticos e de atrevidos bentevis; que as
cordas voltassem a ser o informe e impenetrável aço, desde que aquela manhã se
fizesse outra vez uma manhã como outra qualquer]
: com um simples roçar de barba mal-feita sobre o meu rosto que
sorrindo fingia dormir.
(do sonhar)
Eu tinha ido dormir cedo naquela terça à noite.
[Sonhava, naquela profundidade abissal de que são feitos os
sonhos infantis].
Fui dormir cedo por conta de uma promessa
[da qual me arrependo amargamente]
que tinha feito à minha mãe
: [“se não for dormir agora, não vai ganhar aquele bandolim que
teu pai te prometeu”]. De verdade eu queria era um violão.
[Mas para o corpo de um menino de nove anos, um violão fica
parecendo uma camiseta tamanho GG: esconde a gente: uns olhos grandões por trás
de uma madeira inchada. Fica ridículo, ainda que o guri seja um exímio
violonista].
Ele achava mais adequado um cavaquinho
: [pequeno, poucas cordas, peso e tamanho ideais].
Mas pra mim o problema tava justamente aí: depois de ouvir
tantas vezes o Oscar Wilde tocando bandolim, não dava pra negociar: ele era de
um formato mais arrojado: uma enorme pêra convexa de madeira, com quatro cordas
a mais e quando trinado me levava mais longe que minhas corridas pelo meio da
sala onde, em variadas formações, ele se derramava com seus companheiros de
virar-a-noite: em jacós, valdirazevedos, pixinguinhas...
[imagem: albumitaucultural.org.br]
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