Ela
assistia a um filme cult. Logo ela
que se enfada com facilidade à lentidão de filmes-arte, desta feita, enrolada
em grosso cobertor, pois o frio prometido para julho passado veio redobrado
agora em agosto, assistia a trama fílmica com atenção, mergulhada numa aura de
tristeza que a sufoca desde há um longo mês.
Sentei-me
em silêncio ao seu lado no sofá, interrogando como a trama do filme cult a teria capturado, embora eu saiba
bem que na tristeza qualquer detalhe nos enternece, nos comove, no faz chorar.
Lembro-me,
por exemplo, de certa feita, ainda lambendo a ferida de uma paixão malograda,
caminhando distraído pela cidade, olhando para todos os lados em busca de
respostas, vi no chão um recorte de jornal amassado e sujo, cuja chamada dizia:
“O que fazer quando o amor fracassa?”. Certa psicóloga, por meio de dez
recomendações, orientava os incautos fracassados do amor, como eu, naquele
momento, a superar sua dor e a, Deus nos livre!, encontrar uma nova paixão. A
despeito de meu desprezo por esse tipo de psicologia fácil, barata e desumana,
eu dei especial atenção àquele artiguinho de meia página de um medíocre
semanário. Dei atenção porque aquelas tolas palavras falavam diretamente à
minha dor, porque, embora a minha irascível razão as refutasse com tenacidade,
meu pobre coraçãozinho acolhia o afago edulcorante daquelas palavras, amigas
desconhecidas.
Era
sobre almas, o filme falava sobre venda, troca e empréstimo de almas. O
protagonista àquela altura, o filme já havia iniciado há um bom tempo quando
comecei a assisti-lo, havia emprestado a sua alma para uma empresa que
realizava tal procedimento. Em troca, ele havia recebido a alma de uma poeta
russa. Importante ressaltar que o protagonista era, na trama, um ator mediano de
teatro, que ao receber sua nova alma, supera-se a si mesmo.
No
entanto, apesar do sucesso alcançado, no mais, a sua vida passou a ser mais
infeliz do que era antes, pois a alma da poeta russa era mais intensa que a
sua. Lembro-me de uma fala do protagonista que, perplexo, pergunta-se: “Como
ela pôde abandonar essa alma, essa alma é extraordinária!”.
Fácil
perceber que daquele momento em diante, a trama do filme já quase me dominava,
fazendo-me esquecer, momentaneamente, o objetivo de eu ter começado a
assisti-lo, qual seja, por que L. está assistindo a um filme cult?
Quem
me despertou ao meu breve entorpecimento foi a própria L., quando me perguntou:
Você queria ter a alma de quem? Dei
um sorriso como resposta, pois, realmente, não sabia dizer, se tivesse tal
oportunidade, que alma eu quereria tomar por empréstimo, embora tal ideia fosse
mesmo muito tentadora.
Mas
sei que L., ao fazer-me tal pergunta quis apenas me agradar, pois ela sabia que
era o tipo de pergunta que eu gostaria de ouvir. Inclusive ela podia até intuir
a resposta: Certamente eu gostaria de
tomar por empréstimo a alma atormentada de um grande nome da literatura.
Mas ela sabe também que isso não passaria de mais um sofisma de minha parte,
pois ela conhece meus medos, e, convenhamos, alma atormentada por alma
atormentada, fico com a minha mesmo, que já conheço há mais de quarenta anos.
Mas
eu não queria me dispersar, pensando em coisas que diziam respeito a mim, para
isso eu tinha já o flagelo dos dias e as noites insones, até o fim final. O que eu precisava decifrar,
qual um noviço hermeneuta, era como o filme cult
sobre transações anímicas havia lancetado o estado de espírito de minha pobre e
triste L., a ponto de ela se submeter à inteligência narrativa de um complexa
trama.
Olhei-a
de esguelha, enquanto uma nova e dispersa lágrima caía de seu olho direito,
pois o esquerdo estava oculto por uma das pontas de seu indefectível e grosso
cobertor azul-claro, e penso ter compreendido, só penso ter compreendido, pois
não sou mais tolo em tentar cotejar a aparência das pessoas com o que lhes vai
por dentro.
E
o que pensei? Pensei que, com a possibilidade de cedermos nossa alma e não
tomarmos a alma de outrem em troca, sim, o filme também apontava para essa
hipótese, ficaríamos, assim, desalmados, livres de todas as nossas dores,
todas. Dessa forma, L. se esqueceria de que um dia, uma menina teria vindo ao
mundo, há setenta e sete anos atrás, teria tido uma infância, teria sido jovem,
teria alcançado a maturidade, teria casado, teria tido duas filhas, uma delas
sendo a própria L., teria amado e sido amada, teria, enfim, vivido toda uma
vida até o fim final, findado
exatamente há um longo mês, quando a aura de tristeza começou a sufocar L.
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