terça-feira, 7 de maio de 2013

Foucault e o bestiário de Borges




Foucault atribui a gênese de seu livro As palavras e as coisas, a um texto do escritor argentino Jorge Luis Borges, que menciona a existência de uma certa “enciclopédia chinesa”, cujo conteúdo apresenta uma incongruente classificação de animais,

"a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas".

O pensador francês demonstra sua perplexidade através de um longo riso, posto que a leitura do inaudito escrito, o posicionou numa distância considerável da familiaridade do pensamento ocidental, assentado na ordenação lógica, racional e conceitual.

A taxinomia revelada pela enciclopédia chinesa torna-se ainda mais intrigante por se apresentar em ordem alfabética, dando a ela ares de verossimilhança, o que coloca o logos do ocidente diante de seu próprio limite, ou seja, na impossibilidade de pensar tal possibilidade.

Porém, tal irrealização, não se apresenta com força suficiente para impedir a sanha cartesiana de dar um mínimo de sentido e razão de ser à ordem apresentada pelo bestiário chinês. Foucault busca, então, rearranjar a impraticável classificação referida, numa nova ordem, palatável ao modo de pensar logocêntrico. Em sua nova apresentação, os animais referidos seriam divididos, basicamente, em reais, aqueles com existência física observável e tangível (embalsamados, domesticados, leitões, cães em liberdade, que se agitam como loucos, que acabam de quebrar a bilha), e, fictícios, que só existiriam no âmbito do imaginário (pertencentes ao imperador, sereias, fabulosos, inumeráveis, desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo).

No entanto, uma nova dificuldade se impõe, pois, a grande questão, não é justapor animais reais e fictícios numa série alfabética, mas em que espaço se poderia promover este inusitado encontro. Para Foucault, não há outro topos possível para esta incrível reunião animalesca, senão no espaço da linguagem, localizada, neste caso, naquela folha em branco que Borges transcreveu as imagens que dele desejavam irromper.

A possibilidade do riso de Foucault, então, não se consumou, senão por um alargamento profundo de sua compreensão, a ponto de abrir poros nas fronteiras de sua racionalidade, para que se ventilassem os sopros de outros níveis e modos de conhecimento. Neste sentido, inegavelmente, o pensamento oriental, representado aqui pela improvável enciclopédia chinesa de Borges, leva larga vantagem em relação ao ocidental, já que está envolvido, desde a sua fundação, numa atmosfera prenhe da inefável transcendência, e cuja linguagem escrita, não traduz o som da voz em linhas horizontais, distanciando-se do infinito, mas se alteia em colunas verticais, os ideogramas, resguardando a busca de intimidade com os céus.

A impossibilidade do pensamento ocidental, racionalista e racionalizante, em abarcar interpretativamente os motivadores daquele absurdo congraçamento bestial, está na tentativa malograda de se pensar as imagens, em que eles se constituem, abstraindo-se das mesmas, e não as tomando em sua densidade simbólica. Por este motivo, também se percebe nesta nossa breve discussão empreendida a partir de Foucault, o menosprezo, por parte do logocentrismo ocidental, pelo mundo das imagens, pela intensidade equívoca do âmbito do imaginário, instaurador da exigência de uma fina sintonia interpretativa para o vislumbre dos inúmeros e mutáveis sentidos de sua manifestação.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 6ª ed. [trad. Salma Tannus Muchail]. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 
 

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