segunda-feira, 6 de maio de 2013

Vulcano, um deus humano, demasiado humano




O cômico já está disposto na narrativa, embora ainda um tanto sisudo, desde a Ilíada. Tome-se como exemplo o papel cumprido por Vulcano, ilustre artífice do Olimpo, cuja característica risível impressa por Homero, estabelece-se desde a aparência desse curioso personagem, exageradamente dotado de fealdade, pois disforme e coxo.
Homero introduzia sutilmente o risível em meio a um rol de graves ações realizadas por gravíssimos e portentosos heróis, a partir da (des) figuração de um antípoda da beleza.
É pela antítese, melhor, é pela ironia que Homero faz com que seus leitores esbocem jocosos sorrisos.
A passagem que traz essa revelação é aquela em que Vulcano intervém ardilosamente em favor de Juno (sua mãe), na contenda provocada por ela com o Júpiter (seu pai), por conta da intromissão dela em questões humanas, condizentes tão-somente às inquestionáveis decisões do deus maior do Olimpo.
A ironia homérica, aqui disposta, está no fato de Vulcano protagonizar o risível, não por sua desastrosa aparência, mas por seus artificiosos dotes. E nem nos referimos aqui à sua engenhosidade no manuseio da forja e do martelo em densa fornalha, [“Ora com sopro lento, ora apressado,/Segundo o que há na mente e quer o artista./Cobre o indômito ao fogo e estanho e prata/E ouro pôs fino, ao cepo vasta incude,/A tenaz numa mão, noutra o martelo.”], mas de sua astúcia no trato com as palavras.
Para amainar a ira de Júpiter em relação às intromissões de Juno em seus desígnios, Vulcano exorta a mãe, em primeiro lugar, a prescindir em opinar sobre os desatinos das ações dos humanos [“É praga intolerável que aos Supremos/Questões humanas alvoroto excitem;”]. Para tanto, alerta para o preço alto a pagar por esse tipo de atitude: a perda dos prazerosos benefícios advindos do habitar os altos céus [“Se o mal grassa, os festins seu preço perdem.”; “Não nos turbe as delícias do banquete./Pois, se tal se lhe antoja, o Omnipotente/Destes asentos nos derriba a todos.”]. Na sequência, sugere à iracunda genitora, femininas manhas para aplacar a raiva paterna [“À mãe discreta aviso a que amacie/Meu pai dileto;”; “Sim, com ternos obséquios o acarinhes; Plácido ele nos seja.”].
Já com uma taça de vinho à mão pelo filho ofertada, Juno recolhe suas mágoas, e se une a Júpiter em novas núpcias.
Toda essa ação não ocorre no recôndito íntimo de um aposento individual, mas à vista de todos os demais deuses que a presenciam em estrépitas gargalhadas [“Os beatos celícolas romperam/Numa infinita cachinada, quando/Vulcano a escancear se azafamava.”]. É Homero que faz deslizar suavemente a épica para a comédia, migrando a trama narrativa em risível cena teatral.
Eis o germinar da comicidade na épica, o riso provindo de um enfeixar de gêneros.

HOMERO. Ilíada. [trad. Manuel Odorico Mendes]. São Paulo: Martin Claret, 2004.

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