O
cômico já está disposto na narrativa, embora ainda um tanto sisudo, desde a Ilíada. Tome-se como exemplo o papel
cumprido por Vulcano, ilustre artífice do Olimpo, cuja característica risível
impressa por Homero, estabelece-se desde a aparência desse curioso personagem,
exageradamente dotado de fealdade, pois disforme e coxo.
Homero
introduzia sutilmente o risível em meio a um rol de graves ações realizadas por
gravíssimos e portentosos heróis, a partir da (des) figuração de um antípoda da
beleza.
É pela
antítese, melhor, é pela ironia que Homero faz com que seus leitores esbocem
jocosos sorrisos.
A
passagem que traz essa revelação é aquela em que Vulcano intervém ardilosamente
em favor de Juno (sua mãe), na contenda provocada por ela com o Júpiter (seu
pai), por conta da intromissão dela em questões humanas, condizentes
tão-somente às inquestionáveis decisões do deus maior do Olimpo.
A
ironia homérica, aqui disposta, está no fato de Vulcano protagonizar o risível,
não por sua desastrosa aparência, mas por seus artificiosos dotes. E nem nos
referimos aqui à sua engenhosidade no manuseio da forja e do martelo em densa
fornalha, [“Ora com sopro lento, ora apressado,/Segundo o que há na mente e
quer o artista./Cobre o indômito ao fogo e estanho e prata/E ouro pôs fino, ao
cepo vasta incude,/A tenaz numa mão, noutra o martelo.”], mas de sua astúcia no
trato com as palavras.
Para
amainar a ira de Júpiter em relação às intromissões de Juno em seus desígnios,
Vulcano exorta a mãe, em primeiro lugar, a prescindir em opinar sobre os
desatinos das ações dos humanos [“É praga intolerável que aos Supremos/Questões
humanas alvoroto excitem;”]. Para tanto, alerta para o preço alto a pagar por
esse tipo de atitude: a perda dos prazerosos benefícios advindos do habitar os
altos céus [“Se o mal grassa, os festins seu preço perdem.”; “Não nos turbe as
delícias do banquete./Pois, se tal se lhe antoja, o Omnipotente/Destes asentos
nos derriba a todos.”]. Na sequência, sugere à iracunda genitora, femininas
manhas para aplacar a raiva paterna [“À mãe discreta aviso a que amacie/Meu pai
dileto;”; “Sim, com ternos obséquios o acarinhes; Plácido ele nos seja.”].
Já com
uma taça de vinho à mão pelo filho ofertada, Juno recolhe suas mágoas, e se une
a Júpiter em novas núpcias.
Toda
essa ação não ocorre no recôndito íntimo de um aposento individual, mas à vista
de todos os demais deuses que a presenciam em estrépitas gargalhadas [“Os
beatos celícolas romperam/Numa infinita cachinada, quando/Vulcano a escancear
se azafamava.”]. É Homero que faz deslizar suavemente a épica para a comédia, migrando
a trama narrativa em risível cena teatral.
Eis o
germinar da comicidade na épica, o riso provindo de um enfeixar de gêneros.
HOMERO. Ilíada. [trad. Manuel Odorico Mendes]. São Paulo: Martin Claret, 2004.
[imagem: marciliomedeiros.blogspot.com]
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