Há
coisa de dois meses atrás, Ródia Raskólnikov publicou na Palavra Periódica, revista esta que fundiu-se com a Palavra Hebdomadária, um artigo, no
mínimo curioso, intitulado O crime.
No
referido artigo, afirma o autor, que todos os homens estão divididos em seres ordinários e extraordinários. Os homens ordinários se caracterizam pelo dever à
obediência e por não terem o direito de transgredir a lei, uma vez que são o
que são, ordinários, portanto, medíocres, vulgares.
Os
indivíduos extraordinários, por sua vez, têm o direito de cometer todos os
crimes e de violar todas as leis pela única razão de serem o que são, a saber,
extraordinários, grandiosos, excessivos.
Raskólnikov,
no entanto, esclarece que o direito respeitante aos homens extraordinários, não
se constitui no direito legal, mas do direito que estes têm de permitir às suas
respectivas consciências saltarem certos obstáculos, impedimentos e óbices
morais. Chama a atenção, no entanto, que tal direito somente é exercido por
tais homens, quando visam a realização de uma inaudita ideia que, talvez, venha
se constituir em benefício de toda a humanidade, conforme o próprio articulista
explica: a meu ver, se as descobertas de
Kepler e de Newton não ocorreram em consequência de uma série geral de
circunstâncias para chegar à humanidade, mensuradas pelo sacrifício de uma, cem
ou mesmo mais vidas humanas, suscetível de lhe embargar a carreira, Newton
teria o direito, mais do que isso, o dever de suprimi-las, a fim de facultar a
difusão de seus descobrimentos ao mundo inteiro.
Raskólnikov
fundamenta sua tese em argumentos que, a despeito de serem questionáveis, não
deixam se assentar numa retórica assaz convincente. Segundo ele, todos os
legisladores e guias da humanidade, a começar dos mais antigos, continuando-se
pelos Licurgos, os Solons, os Maomés, os Napolões, etc., todos, até esses
últimos, têm sido criminosos porque, promulgando novas leis, violam, por esse
motivo, as antigas que até então tinha sido fielmente observadas pela sociedade
e transmitidas de geração em geração. E, para não recuarem, mesmo com
derramamento de sangue (sempre inocente e às vezes heroicamente derramado em
defesa de antigas leis), por menos que tivessem necessidade disso.
Acrescenta
Raskólnikov, em seu já polêmico artigo, que, em razão da afirmação anterior,
não é de estranhar que a maior parte desses benfeitores e desses guias da
humanidade tivessem feito correr torrentes de sangue, amplamente justificadas
por sua imprescindíveis ideias em favor da humanidade.
De
forma ousada, mesmo o sob o risco de ver-se questionado pelos homens do poder e
da lei, e de sofrer algum tipo de sanção por parte destes, Raskólnikov não
capitula, e agudiza o seu discurso, ao proclamar que todos, não somente os
grandes homens, mas, também, aqueles que se elevam acima da média e são capazes
de pronunciar algumas palavras novas, sejam, por sua própria natureza,
necessariamente criminosos, em um grau variável. De outra forma, consoante o
autor, não é possível escapar à bitola comum da condição humana. Em razão
disso, tal estirpe de homens, a composta pelos extraordinários, não podem optar
pelo imobilismo, posto que sua natureza assim não lhes permite, e, para o
autor, não deveriam mesmo ficar parados, ainda que assim o desejassem.
Para
melhor esclarecer a questão da existência de homens ordinários e homens extraordinários,
Raskólnikov admite, em primeiro lugar, que toda e qualquer classificação traz
consigo, inevitavelmente, algo de arbitrário. No entanto, apesar disso, o
articulista russo chama a nossa atenção de que não é para a taxionomia que se
deve ficar atento, mas para os princípios que ela resguarda.
Quais
sejam, o de que os homens podem ser dividos, em geral, segundo a ordem da
própria natureza, em duas categorias: uma inferior (indivíduos ordinários) ou
ainda o rebanho cuja única função consiste em produzir seres semelhantes a ele
e aos outros, o verdadeiros homens que gozam do dom de fazer ressoar, em seu
meio, palavras novas.
Caracterizando
melhor cada uma das categorias, Raskónikov conclui, A primeira, quer dizer, o rebanho, é composto de homens conservadores,
sensatos, que vivem numa obediência que lhes é cara. Eu acho que fazem bem em
obedecer porque é este seu papel na vida e não há nada de humilhante nisso. Na segunda,
todos transgridem a lei, destrutores, ou, pelo menos, seres que tentam
destruir, segundo seus meios.
Dessa
forma, para o autor, estariam justificados os crimes que são e que possam vir a
ser cometidos pela segunda categoria de homens, a dos extraordinários, esses
homens que reclamam, sob as mais diversas fórmulas, a destruição da ordem
estabelecida e proveito de um mundo melhor.
Se
assim for necessário, finaliza Raskólnikov, para fazerem triunfar suas ideias,
tais homens passam sobre cadáveres, atravessam mares de sangue, porque, dentro
deles, a sua consciência permite-lhes fazê-lo em função naturalmente da
importância de sua ideia.
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